Acordo com um balançar mais forte, pela janela do intercidades vejo que estamos a atravessar um rio tranquilo. As margens estão repletas de árvores já carregadas de frutos que se adoçam preguiçosamente ao sol terno deste Setembro. Parece que a paisagem pediu para não deixar que esta imagem passasse despercebida a quem por ali viaja. Olho em frente e vejo-te a dormir perdida no teu mundo de sonhos viajas também feliz. Ainda não consigo discernir se estou acordado, sinto que o sono me puxa de novo para ele, olho para o relógio. Está mesmo a anoitecer, resolvo despertar. Olho de novo para ti, continuas a dormir a sono solto. O sol de fim de tarde pousa no teu cabelo dando-te um ar angelical, é quase irresistível a tentação de passar os meus dedos pelo meio dele para sentir a suavidade e a doçura do teu cheiro. Dormes alheia da beleza que transborda de ti, vives assim. Dirijo-me ao quarto de banho calmamente pensando na forma como te irei acordar. Vejo-me ao espelho, já começam a aparecer algumas rugas, certamente graças às muitas horas de trabalho pela noite fora durante todo o ano. Estes 15 dias de férias juntos foram tão difíceis de conseguir e agora quase que voaram das nossas mãos, restam-nos apenas alguns dias mais para nos perdermos entre terras não lusas e tenciono que nós os aproveitemos ao máximo. O espelho continua a reflectir o mesmo trintão cansado. Estou com uma barba de dois dias. Pego no meu estojo e lentamente faço-a desaparecer, aproveito também para escovar o cabelo, os dentes e por um perfume que me ofereceste. A minha camisa está toda amarrotada. Tento escondê-la o melhor possível dentro das minhas calças. Sorrio. Enganei o espelho – um trintão cansado mas com melhor aspecto. Não estou assim tão mal… e esta cor que as férias me trouxeram apaga as horas fechado no escritório. Já tu continuas quase igual ao dia em que te conheci, mais madura, mas ainda jovem e cada vez mais bela. Pareces sempre serena e cheia de vitalidade, sempre cheia de energia, sempre fresca. Sei que trabalhas tantas horas quanto eu, lutas contra as mesmas adversidades que eu e por muito que te pergunte como consegues manter-te sempre assim tão alegre não consigo tirar-te nada mais do que um "Que exagero, sou igual às outras pessoas, com dias bons e maus". Nunca te vi com um dia mau, já te vi com problemas, mas nunca te vi a desanimar, nunca te vi a deixar de lutar e geralmente os problemas fogem de ti rapidamente. Talvez seja por não estar contigo sempre. Sinto-me ridículo agora já com trinta anos, com os últimos três passados ao teu lado e ainda não repartir o meu espaço, a minha vida contigo. Nunca deste a entender querer algo mais do que aquilo que temos. És sempre serena, mas sei que a nossa vida podia ter outro gosto se fosse passada ao lado um do outro. Trabalhei tanto para conseguir estas férias, queria falar contigo sobre isso mas nunca sei como o fazer. Pelo menos encontro sempre qualquer coisa que me faz adiar esta conversa. No fundo sinto medo de partilhar o espaço que me custou tanto a alcançar além de ter medo de estragar aquilo que temos agora – bem sei o feitio que tenho. O espelho continua a olhar para mim, vejo um resto do homem que fui. O homem das noitadas, o homem das mulheres. Mas tenho já de procurar bastante para o descobrir naquele reflexo. Batem à porta. Acordo. "Só mais um minuto". Guardo tudo no meu estojo e saio do quarto de banho, já anoiteceu e sinto-me aborrecido por ainda não ter pensado na forma como te acordar e no que fazer contigo depois da nossa chegada. Tenho de ter alguma ideia até chegar à nossa carruagem. Abro a porta lentamente para não te acordar, vejo a tua cabeça ainda a repousar e espero ter alguma ideia nos próximos minutos. Quando me sento finalmente e olho para ti sorris. Sorris com o exagero de meiguice que tens ao acabar de acordar, inclinas-te sobre mim, sinto ainda o calor que imana de ti, e beijas-me… Simples, sereno, perfeito. O que era preciso mais?